Meu pai e minha mãe foram vizinhos desde a infância. Cresceram juntos, em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Quando minha mãe fez 18 anos, eles acharam que tava na hora de mudar de vida. Casaram e mudaram pra São Paulo, achando que seriam felizes e ganhariam dinheiro. Ele logo começou a trabalhar como pedreiro. Ela demorou mais, mas conseguiu trabalhar como babá dos dois filhos de uma madame. Tudo ia bem. Mas aí ela ficou grávida.
Depois que Maria Aparecida, minha irmã mais velha, nasceu, minha mãe queria voltar logo a trabalhar, mas ela logo ficou grávida de novo. E aí nasceu a Maria da Graça. Com duas crianças pra criar, seria difícil voltar a trabalhar, ainda mais morando longe da família, sem nenhum conhecido pra tomar conta das crianças. Pra piorar, naquele tempo pouca gente cuidava pra não engravidar. E meu pai também não ia querer. Primeiro, pq ele era religioso e achava que era pecado. Segundo, pq ele queria mesmo era um filho, um menino. E, assim, vieram a Maria da Conceição e a Maria Auxiliadora. E minha mãe, que, quando nova, era alegre, cheia de vida e de planos e chegou a sair de casa escondido pra namorar e ir pra quadra da escola de samba, estava com pouco mais de 20 anos , quatro filhas e grávida de novo. E meu pai, que trabalhou a vida toda, conseguia pagar a comida e olhe lá!
E, então, eu nasci. Antes da hora. Mirradinha. E branca. Meu pai, esqueci de dizer, é negro. Minhas irmãs, todas, mulatas. E eu nasci branquela, igual minha mãe. Todo mundo sempre disse que eu era a cara dele; mas ele nunca acreditou que eu era filha dele. Minha mãe jurava de pé junto que nunca tinha saído com outro homem, mas ele não acreditava. E, quando ele me viu, fraca, quase morrendo, disse "É melhor que morra. Já tenho quatro meninas minhas em casa, não preciso dessa".
Eu passei 2 meses no hospital, num morre/não morre. Minha mãe lá, todo dia, rezando. Meu pai brigando com ela, dizendo que ela tava largando as outras filhas. Foi uma enfermeira que me salvou. Ela não aguentou ver o sofrimento da minha mãe e disse "Pra isso não adianta ficar só rezando. Conheço uma mãe-de-santo que é tiro e queda". No desespero, minha mãe aceitou. Meu pai nunca soube. Mãe Lindalva me benzeu e disse "Morre, não. É filha de Oxalá". Dois dias depois, minha mãe me levou pra casa. E me batizou. Disse pro pai que fez promessa e que eu tinha que chamar Lindalva. E, por eu ser a única que não era Maria, ele teve certeza de que eu não era filha dele.
Ele nunca me deu um presente. Minhas irmãs, mesmo com o pouco dinheiro, ganhavam bobeirinhas dele. Eu não. Eu só apanhava. Quando fazia algo errado. O problema é que ele achava tudo errado. Tudo que eu fazia. Se eu comia pouco, era errado. Se eu comia muito, também. E, às vezes, ele também batia na mãe... Eu nunca ouvi ele dizer meu nome. Só me chamava de “a branca azeda”. Pra minha mãe, dizia “a sua filha”. Pras outras pessoas, “a filha da Mirtes”.
Quando pequena, eu queria tanto que ele gostasse de mim. Com o tempo, cansei. Percebi que não adiantava ser a melhor aluna da escola, ajudar a mãe em casa. Ele continuava me odiando. E me batendo...
Quando eu fiz 12 anos, ele disse pra mãe que não tinha como sustentar 6 mulheres. E me mandou morar no Rio, com minha vó. Nessa época, o vô – que eu nem conheci – já tinha morrido. Os pais da minha mãe, no caso. Os pais do meu pai tinham voltado a morar no Ceará, porque lá era tudo mais barato. Ou eles achavam que era.
Morei 5 anos com a vó. Ela cuidou de mim, como minha mãe cuidava. E era melhor pq eu não precisava dividir a atenção dela com minhas irmãs. Lá eu tinha amigos também. A gente ia pra praia, ia na Igreja. E, de vez em quando, ia pra quadra.
Eu sempre gostei das noites na quadra... Quando fui pela primeira vez, a vó disse “Se o sangue da sua mãe corre nas suas veias, você vai amar. Quando era mocinha, ela saía escondida à noite e ia pra lá”. Ela tinha razão. A bateria, o calor, a alegria daquelas pessoas. Ali, era Carnaval o ano inteiro. E se era feliz. Sempre.
Aí a vó ficou doente. Cuidei dela o quanto podia. Só que ela já era velhinha. E morreu. Eu achei que perder a vó era a pior tristeza. Besteira! Pior foi ter que voltar pra São Paulo, pra junto da mãe, das Marias e do pai. Pior era deixar de ser “a paulista” e voltar a ser “a branca azeda”.
Minha mãe e minhas irmãs pareciam todas a mesma pessoa. Muito magras, sofridas. Todas muito religiosas. Com roupas iguais, as mesmas saias compridas, as mesmas blusas muito fechadas. Todas sem cor. Meu pai estava velho, muito velho. Me olhou e disse “Você virou uma perdida lá ou já tava no teu sangue?”. E começou a xingar minha mãe, por ela ter uma filha como eu. Por causa das minhas roupas coloridas, meu short curto, meu cabelo solto, meu batom, meu perfume. Disse que eu só queria caçar homem. Eu tinha 17 anos e nunca tinha nem beijado um rapaz. Acho até que, por causa do pai, eu tinha medo deles. Eu só gostava de me enfeitar, de ficar bonita.
No primeiro ano, eu apanhei toda semana. A mãe também. Não demorou pra eu descobrir que ele bebia toda noite. E que o dinheiro que sustentava a casa vinha das costuras da minha mãe e não do trabalho dele. Maria Aparecida casou em dezembro e eles foram morar em Minas. Ele era da Igreja.
No segundo ano, ele bebia, chegava em casa chorando, dizia que tinha saudade da Cida e batia ainda mais em nós duas. Comecei a trabalhar no Centro, de garçonete, pra ajudar em casa. Na condução, conheci a Doracy. Um dia ela disse “Você gosta de samba, Dalva? Vou te levar num lugar que é um escândalo”. Me levou pro ensaio de uma escola de um bairro lá perto. Quando a gente entrou, ela me mostrou um rapaz que cantava com toda a alma. Até emocionava o jeito que ele cantava! E ela disse “Aquele é o Bola Sete. É ele que escreve os sambas. Sou doidinha por ele, mas todas essas mulatas daqui são.” Ficamos sentadas numa mesa e lá pelas tantas o tal veio andando em nossa direção. Doracy não acreditava “Jesus, Maria e José! Com tanta mulata quer samba melhor que eu, ele vem falar justo comigo!”. Aí ele me olhou e disse “Não sabe sambar?”. Eu acho que eu fiquei vermelha, eu não tava acostumada a falar com homem, assim. Disse que sabia e ele disse que a gente tava perdendo tempo ali. Fomos, nós três, pro meio do povo. E eu dancei. Fechei os olhos, lembrei de como era feliz quando morava com a vó e sambei. Quando abri, vi que tavam me olhando e perguntei pra Doracy “Fiz algo errado?”. Foi ele que respondeu. “Fez, não. Você é melhor que quase todas as mulheres dessa quadra, só isso.” Doracy disse “É, você até que fez bem.” E aí chamaram o Bola Sete pra cantar de novo. Antes de sair, ele disse “Eu vou casar com você, nêga!”. Doracy quis logo ir embora. No ônibus disse que não tinha gostado e não voltava mais lá. E que Bola Sete era insuportável. Nessa noite demorei a dormir. Eu só pensava numa palavra: “nêga”. Ninguém nunca me chamou assim. E eu gostei muito de ouvir alguém chamando... Mas, sem Doracy, não voltei lá. Doracy encasquetou de ir num forró. Foi péssimo, eu não consegui dançar e eu que não ia dançar com homem nenhum. Ela dançou a noite toda. E quis voltar, e voltar, e voltar. No final do ano, foi a Graça que casou. Com o irmão da Cida. E eles foram morar todos juntos, em Minas.
O pai dizia que agora só tinha metade das filhas dele com ele. Bebia mais, chorava mais. Pra não apanhar, eu saía. E foi numa dessas fugidas que decidi voltar na quadra da escola de samba. Sozinha. Mais de um ano depois...
Botei o pé na quadra e ouvi a voz dele. “Achei que nunca mais ia te ver, nêga. E aí, como eu ia casar com você?”. Bola Sete. Conversamos muito aquela noite. Ele foi gentil, educado. E não parava de me elogiar. Cheguei em casa leve, feliz... e apanhei. Foi assim por 6 meses. Longas conversas com o Bola e surras tremendas em casa. Até o dia em que não aguentei. Ele estava bêbado, pediu uma cerveja, minha mãe disse que não tinha dinheiro, ele deu um tapa na cara dela. E disse “Vai comprar a cerveja, branca azeda”. Eu disse que não, ele levantou para me bater e eu disse “Eu tenho 19 anos e sou a única das tuas filhas que trabalha. Trabalho pra dar comida pra minha mãe, pras minhas irmãs e pra você. Não pra comprar cerveja. Se você encostar um dedo em mim de novo, eu vou pra polícia e ninguém mais come aqui”. Ele me olhou. Só. Com ódio, muito ódio. E disse “Você não é minha filha, vagabunda!”.
Nessa noite, cheguei na quadra chorando. Bola me abraçou e disse que tudo ia dar certo. E eu dancei. Como nunca. Foi nesse dia que beijei Bola pela primeira vez. E foi também a primeira vez que eu beijei. Que estive com um homem.
Quando Maria da Conceição ficou noiva e eu percebi que as coisas iam piorar, disse pro Bola que eu não podia ficar mais em casa. Ele disse “Eu não tenho dinheiro pra gente casar ainda, nêga.” e eu disse que eu não precisava de dinheiro pra ser a mulher dele. Achei bonito ele querer fazer tudo certo, mas não dava pra esperar. Ele foi comigo até em casa, fiz minha mala. Quando tava saindo, já na rua, o velho apareceu. Bêbado. Perguntou aonde eu ia. Disse que ia morar com Bola Sete. Ele disse que não ia deixar e agarrou meu braço. Antes que eu falasse qualquer coisa, o Bola já tava dizendo “Larga minha mulher agora. Ela vai comigo e eu vou cuidar dela como você nunca cuidou”. O velho ainda disse “Se você for embora, não é mais minha filha.” e eu, com um orgulho imenso, disse “Eu nunca fui sua filha, esqueceu?”.
Não vi mais ele. Nenhum deles. Quando voltei pra ver a mãe, dois meses depois, a casa tava vazia. Encontrei Doracy no caminho. Ela não sabia deles e contou, toda feliz, que tava de casamento marcado e que o noivo era da Eletropaulo. Contei que eu também ia casar de verdade com o Bola, quando ele tivesse dinheiro. Ela riu e disse “Ele nunca vai ter dinheiro. E sambista não casa. Logo aparece outra mais nova que você e mais gostosa. Aí que quero ver o que você vai fazer”.
Hoje tenho 25 anos. Nunca mais vi minha família. Quer dizer, minha família agora é o Bola. Doracy tava certa quando disse que a gente não ia casar, com bolo, véu e grinalda. Mas nem precisava disso... Ela errou quando disse que ele me trocaria. Troca, não. Eu sei que o que a gente tem é pra sempre. Dinheiro a gente não tem, mas tem o mais importante: um ao outro. Doracy não casou? Marido da Eletropaulo e tudo. E continua aqui no morro. E eles tão pior que a gente, pq ainda têm dois filhos pra criar. Pelo menos, Deus teve a sabedoria de não dar filhos pra gente. Bola não quer que eu trabalhe e ele ganha muito pouco com os sambas dele. Mas a gente tem o barraco e dinheiro pra comer e pra pagar seu Mané Gorila. Então, tá bom. E eu sei que ele é bom, faz cada samba que até me arrepia. Um dia, a gente ainda vai mudar pra um lugar melhor. E, quem sabe, até ter filhos. Aí quero ver o que a Doracy vai falar, aquela invejosa.
De uma coisa eu sei. Eu já nasci brigando pra viver. E depois briguei com meu pai. Eu não desisto, não me entrego. Sei que a gente não nasceu pra sofrer e tem que ter fé e esperança. E sou filha de Oxalá.
3 comentários:
É..
Aos trancos e barrancos, meio de "qualqué" jeito, eu também já fui "essa aí de cima"...
Que magavilha!
E que prova maior de que existe felicidade quando se luta por ela?
ai que saudades que bateu agora daquele garotinho metido a homem e que pra não aguentar mais as desgraças e injustiças que aquele Mané fazia todo mundo passar, deu adeus à sua inocência e rasgou-lhe a arrogância... rsrsrs
Saudaes da Lindalva!! ehheh Super fashion!^^
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