segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O Velho Machado - Parte 1




O velho e as pastas

- ... e o padre disse “Droga, lá vem aquele moleque fanho outra vez me vender o raio da galinha!”.

            Todos na mesa começam a rir. No exato momento em que o velho acaba a piada, todos – desde a menina mais nova até a senhora – estão rindo. Simples explicar o motivo do riso vir ainda antes do entendimento da anedota: não é a primeira vez que ela é contada pela mesma pessoa. Mas toda vez que Lerni Machado de Mendonça – o Machado – repete esse clássico de seu repertório, não tem como não se entregar. Por mais que você conheça a piada e já saiba o final, o jeito loucamente estúpido e ternamente agressivo de Machado é o que te leva a rir.

            Aquela era só mais um dos inúmeros jantares que reuniu aquele grupo. Não que seja fácil ter a família junto, afinal apenas uma vez por ano a parte paulista se junta ao grande clã niteroiense. Mesmo assim, toda visita é sinal de um belo jantar na pizzaria que há anos é o ponto de encontro dos Machado de Mendonça. A “Las Lenas” (o nome surgiu depois que um argentino se agregou à famíla) é um ambiente rústico, toda construída em madeira, com toldos verdes e uma vista para a Serra da Tiririca, localizada na região oceânica de Niterói, Rio de Janeiro, que faz com que até se esqueça a proximidade da praia.

É em uma das muitas mesas de madeira cobertas com toalhinhas brancas que, mais uma vez, o patriarca conta suas histórias, sob o olhar atento da ex-mulher Enaura (uma senhora pequenina de olhos muito vivos), do filho mais velho Álvaro, da ex-nora Denise e de alguns de seus 13 netos. Seu Machado, apesar de proibido pelo médico, enche pela terceira vez o copo com vinho tinto, logo depois que termina a piada. Bebe um gole, limpa os olhos que já não enxergam muito e se cala.

Lerni já deve beirar os 75. A idade real, ninguém sabe, é praticamente um segredo de estado. A única coisa que se arranca do velho quando se toca no assunto é que ele tem muitos anos. E completa: “Desse ano, não passo!”. Se a família fosse se desesperar cada vez que Lerni previu a proximidade de sua morte, já estaria fora de controle. “Ele sempre acha que vai morrer!”, diz Miguel, o neto de 16 anos, apaixonado por culinária e pelo avô. De Lerni não se arranca nem a data de aniversário, pelas estimativas de parentes é alguma data entre outubro e janeiro. E tente perguntar ao velho qual o signo dele, para ter pelo menos uma pista. A resposta será “Elefante!”, sempre. E, como é inevitável que se pergunte depois “Em que horóscopo?”, esteja preparado para ouvir um “No meu!”.

Sentado na cadeira, segura o copo de vinho e acaricia a barriga protuberante escondida por uma velha camiseta. Lerni sempre está de bermuda e camiseta; tem apenas duas camisas que costumava usar nas viagens pela Europa e, hoje, usa apenas para levar as netas “paulistas” – como ele insiste em dizer, mesmo sabendo que uma delas é niteroiense e a outra mato-grossense – para almoçar nos restaurantes mais finos do Centro de Niterói. Num repente, abaixa-se e começa a mexer em umas sacolas que havia trazido para o jantar. Coloca três pastas em cima da mesa, encara a neta mais velha e diz: “Você é a filha mais velha do meu filho mais velho. Ele, foi o único dos meus filhos que fez faculdade e você vai ser a primeira da sua geração a se formar. Pra você, que gosta tanto de ler e escrever quanto eu, pra você que será a primeira jornalista na família – e provavelmente a única -, pra você que adora ouvir umas estórias e histórias, eu trouxe aqui parte da minha vida”. Ela abre a primeira página da pasta empoeirada e lê “A história dos Machado de Mendonça começa quando minha avó veio de Portugal para o Brasil...”. Ela pára, ajeita o óculos, olha com admiração para o avô e pergunta: “Posso ficar com eles? Só pra ler, te devolvo amanhã?”. O velho aceita e ainda diz que trará o resto das pastas no dia seguinte. Em questão de horas, ela terá em suas mãos toda a vida do avô e a história real da família.

(penúltimo semestre da faculdade, trabalho de jornalismo literário, fazer o perfil de alguma pessoa muito interessante... "posso fazer sobre o meu avô?", "pode, mas vou ser muito mais rigoroso com vc... vai precisar fazer algo muito bom pra conseguir um 8 ou 9". tirei 10.)

Um comentário:

Hobby Viajar disse...

Muito bom, parabéns prima!!!