segunda-feira, 21 de junho de 2010

Carta aberta

Caro escritor português preferido,

Sei que deveria, neste momento, escrever estar carta para lhe agradecer. Você - eu sei que posso chamá-lo de você, pois a familiaridade com sua obra nos tornou próximos; não consigo imaginar chamá-lo de "o senhor" - nunca teve ciência da minha existência. Moro aqui, em terras tupiniquins, na colônia. Nunca tive a oportunidade de fazer o que sempre tive vontade de fazer: comprar uma passagem, fazer as malas, bater na porta da sua casa e dizer uma única palavra. "Obrigada". Suas palavras me transformaram. Suas palavras me abriram os olhos. Me livraram da cegueira, me trouxeram a lucidez. Eu sou uma obra viva, sou um ensaio ambulante sobre a cegueira e a lucidez. Suas palavras fizeram com que eu crescesse, com que eu enlouquecesse - a loucura necessária para se ser são - com que eu fosse uma pessoa melhor. E, por todos esses motivos, eu teria a obrigação de te escrever. Mas, no instante em que sei que suas mãos não mais libertarão os pensamentos de sua mente, transformando-os na mais pura, singela e bela literatura, só consigo pensar em algo. Em te pedir perdão.

Perdão por nunca ter conseguido te contar o quanto você foi importante pra mim. O quanto, sem você, eu seria pior. Talvez um pouquinho só; talvez muito. E perdão, principalmente, por ter demorado tanto para te "absorver". Perdão pela repulsa instantânea que senti. Tão cruel fazer com que uma criança de 14 anos leia "O Memorial do Convento", como uma obrigação, como parte do caminho que te conduzirá ao padrão esperado de vida adulta: ao sucesso no vestibular, à graduação em uma boa universidade, ao dinheiro, casamento e filhos. Esse nunca foi meu padrão de realização. Eu jamais acreditei que o vestibular poderia ter qualquer ligação com a felicidade. Com a minha felicidade. E, por isso, era impossível acreditar que algo de que eu precisava para passar no vestibular fosse algo bom. Preconceito, sim. Até mesmo para uma menina que cresceu em meio a livros - e muitos livros - é perdoável. A imaturidade nos cega. Cegueira. E, então, eu me vi soterrada naqueles parágrafos gigantes, naquela pontuação tão diferente da que a gramática me ensinava, naquela ausência de maiúsculas. E decidi que aquilo não me agradava. E, por isso, peço desculpas.

A lucidez veio muitos anos depois. E veio através daquele ensaio. Do sobre a cegueira. Veio com a quebra de um preconceito, de uma barreira, de um muro que me separava do prazer que é saborear suas palavras, na forma exata em que são concebidas. "Ensaio sobre a Cegueira" me fez decidir que eu gostava de você. "Ensaio sobre a Lucidez" me fez admitir que eu o idolatrava. "O Evangelho Segundo Jesus Cristo" me fez confessar que eu queria muito, do fundo do meu coração piegas, que você fosse meu avô. Pela diferença de idade, mas também porque existem certos prazeres que a gente só desfruta na companhia de avôs. Entre eles, o de acreditar em histórias e em estórias. E eu só acreditei, com fé tão fervorosa, na estória da lagartixa que queria virar jacaré - contada pelo vô Beto -, na história da vida do meu vô Lerni e nas suas histórias, meu vô escolhido, meu vô José. E, acredite, mesmo sabendo que a morte não existe, mesmo acreditando que longe é um lugar que não existe, eu senti sua "morte". Como senti a dos meus outros avôs.

Com você eu aprendi a abolir a importância superficial das maiúsculas. Aprendi a igualar tudo. A atribuir valor, independente de algo tão pequeno quanto o tamanho de uma letra.

Com você eu aprendi que podem, sim, existir parágrafos gigantes. Quem determina o tamanho que um parágrafo pode ter? Quem determina o tamanho que qualquer coisa pode ter? Tudo é tão grande e tão ilimitado... Mas também aprendi que um parágrafo pode ser muito muito muito imensamente grande, mas sempre acaba com um ponto final. Sempre. Isso é inquestionável. Assim como todos os problemas na vida. Assim como um parágrafo de 87 anos.

Com você também aprendi que alguns corações - assim como algumas jangadas - são de pedra. Mas o meu - como o seu -, não. O meu é de carne e também sangra todos os dias. Alguns dias é uma gotinha ou duas de sangue só. E tem dias em que enfrento uma hemorragia. Mas é assim: ele sangra. Todos os dias. E, nos últimos dias, ele sangra por você...

Tally M.

5 comentários:

Sentir disse...

E melhor maneira de se esternizar é sendo escritor. Ou escritorA.
Bjos,

Michele Andrea Mondek disse...

Parabéns pela Carta!
Excelente texto e depoimento.
Com toda certeza Saramago mudou a vida de muta gente, inclusive a minha e é fato que estamos todos de luto pela sua morte.

Beijos

Ypsilonka disse...

eu fiquei sem palavras, achei lindo.

Roberto HM disse...

Você fez eu ficar triste de novo...Vois sur ton chemin...

Bi disse...

Abri meu e-mail e vi lá abaixo do seu nome seu blog... abri... vi sua carta pro Saramago. Adivinha quem foi a primeira pessoa que me veio à cabeça quando soube que ele havia morrido? Você. Lembra das citações que eu colecionava e que vc escrevia em suas cartas? As deles sempre foram as mais marcantes e hoje ele sempre me faz lembrar de vc...
Eu tô longe mas tô perto, viu???
Bjos, saudades