sexta-feira, 30 de abril de 2010

Quando ela morrer...

O namoro, na juventude, não tinha dado certo. Separaram-se e trilharam caminhos muito diferentes.
Ele casou com outra.
Ela se envolveu com outros.
Ele teve filhos. Ela, não.
Ele gastou muito dinheiro.
Ela guardou muito dinheiro.
Ele gastava e ela comprava apartamentos.
Ele gastava e ela comprava joias.
Ele, feliz, em festas, com amigos; em viagens, com a família.
Ela, feliz, sozinha, nas compras. Roupas, enfeites, quadros, utensílios de cozinha... tudo.
E, então, o reencontro. A decisão de trilhar o resto do caminho juntos. Já não sobrava tanto tempo... A idade chega. E o cansaço, as dores, o peso extra, a falta do que fazer. Em um ponto não mudaram: ela ainda acumulava, ele ainda gastava. Só que, agora, ele gastava o que era dela.
Era de se esperar que ele, a parte do casal que viveu em festa, não tivesse vontade de acumular. Só que ele tinha... Ele queria acumular o que era dela. Em nem era porque ele precisava: ele ainda tinha muito. De tudo. Dinheiro, bens. Mas a idade, que deveria lhe trazer sabedoria e desapego, se enganou. E trouxe a ganância.
Entre amigos, longe dela, dizia "Quando ela morrer, tudo que é dela vai ser meu".
Pra ela, era ainda mais cruel. Sabia que ela prezava sua presença, depois de tantos anos sozinha. E dizia, sem nem ficar vermelho, "Quando você morrer, eu quero esse apartamento. E o outro. E o outro...".
Ele achava que era natural que tudo ficasse pra ele, pois ela não tinha filhos. E, assim, planejava o que fazer com a herança dela, viva e ao seu lado.
Com o passar do tempo, perdeu completamente a compostura e, até diante da família dela - ela não tinha filhos, mas tinha família - dizia "Quando ela morrer, a prataria é minha... Quando você morrer, tudo que está aqui dentro, é meu".
E ela, ali. Calada. Permitindo.
A família - dela - era toda revolta. Não entendia como ela não enxergava o quão mórbido era alguém cobiçar o que era dela e fazer planos pós-morte (a dela).
Até o dia em que a morte chegou. E, ao partir, levou uma alma. A dele, não a dela. Sozinha, ao lado do corpo sem vida daquele que tinha tantas vezes planejado o que fazer com sua herança, percebeu que todos os bens ainda eram seus. Os seus e parte dos dele. E, sem saber o que fazer com tudo aquilo, chorou.

3 comentários:

KImdaMagna disse...

...e o que doi mais na sua história, é por ela ser verdadeira, história real e que se repete neste mundo cão....

xaxuaxo

Karina Zichelle disse...

dolorida... um pouco mórbido, mas sem deixar de ser bonito...

beijokas, linda
^^

Anônimo disse...

Não sei, mas as vezes acho que o universo tem um senso macabro de justiça ou um senso de humor muito sádico.