Dorothy olhou para o embrulho dourado. Fez aquele movimento com a boca que sempre fazia, quando estava confusa. Abriu e olhou dentro. Só duas coisas. A carta, que ela escrevera até as 3h da madrugada na véspera de um dia tão importante. A carta, tão diferente da que entregara há cerca de 1 ano. Tão mais agradável, tão mais madura, tão mais sensata. Deixou de dormir pq encontraria com ele e queria já entregar tudo. A carta e aquilo. Aquilo que ela caminhara tanto tempo, debaixo de sol forte e chuva torrencial, para conseguir. O tempo em Oz era sempre tão estranho...
Fechou o embrulho dourado. Repetiu o movimento com a boca, aquele que refletia sua confusão. Ele não tinha aparecido. Era isso. Ok, tinham lá os motivos e eles justificavam e ela não tinha qualquer problema em relação a isso. Sabe, ela até teria ido até ele, se pudesse. Se ele deixasse. Só que ela acabou falando disso pra ele. Do embrulho dourado. E perguntou uma forma de entregar. Era importante. E ele não respondeu. Era cérebro que ele não tinha ou audição? Ou visão? (Bom, a visão era mesmo um pouco prejudicada, disso ela sabia).
O que ela ia fazer com esse embrulho dourado? Repetiu o movimento com a boca. Ainda confusa. Jogar fora? Mas tinha dado trabalho... Dar pra outra pessoa era impossível. Aquilo era tão repleto de significados...
Suspirou e repetiu o movimento com a boca, quase um tique. Natural. Naturalmente confusa. Ela lembrava ainda dos tempos difíceis em que tinham se separado, depois de passarem tanto tempo caminhando juntos pelos tijolos amarelos. Lembrou o quanto foi estranho cada um tomar um rumo, diferente, para chegar à cidadezinha verde. Lembrou o quanto isso a machucou. O tornado ali, tão dentro dela. E lembrou da alegria confusa - sempre confusa, sempre tornado - quando eles decidiram voltar à mesma estrada, juntos. Sapatinho de rubi 34 e pé de palha, juntos, nos tijolinhos amarelos. Confuso, tudo bem. Mas tão bom... Para a menina Gale, amizade, quando de verdade, sempre era superior a tudo.
Levantou, segurando o embrulho dourado. Pela milésima vez repetiu aquele movimento com a boca. Havia durado pouco aquele reencontro. Um, dois, dez passos. Separaram-se de novo. Mas caminhos ainda próximos. Ela ainda encontrava com ele, quase sempre. Às vezes via os corvos, de longe. Sabia que ele estava ali. E, então, ele propôs que eles voltassem a trilhar o caminho dos tijolos amarelos juntos. Ela tinha medo de que isso durasse pouco de novo, de que logo viesse mais uma separação. Um medo tão grande. Mas ela aprendeu que quando vc tem medo e faz mesmo assim, isso é coragem. E coragem ela tinha. Coragem, coração e cérebro, essa menina Dorothy Gale. E, por isso, ela aceitou. Ela voltou à estrada, com ele. Off to see the Wizard. E, quando tudo parecia tão bom, ele sumiu. Assim, sem aviso, sem bilhete de despedida. Ela ainda tentou, pq era importante, era tão importante. E ele não havia falado que gostava muito dela? Então, ela devia ser importante pra ele, não é? (Uma vez, ela lhe perguntou como ele falava se não tinha cérebro e ele lhe respondeu que muitas pessoas assim o fazem.). Mas ele, por razões desconhecidas, nem se preocupou em dar uma posição. Em avisar, em dizer "Ó, tô sumindo por isso".
Agora, lá estava ela. Sem entender. Segurando um embrulho dourado e repetindo infinitamente aquele movimento com a boca. O movimento que era quase um reflexo do tornado interno. Menina Gale.
Ela ia se preocupar em entender, de novo? Ela ia se desgastar para resolver, de novo? Ela ia chorar, de novo? Ela ia sofrer, de novo? Não, não ia. Ela aprendia, vagarosamente, mas aprendia. Falta, sempre faria. Saudade, sempre existe. Carinho, não se esgota. Mas ela tinha tanta coisa boa pela frente e tantas criaturinhas agradáveis por perto. Ela estava ali, naquele mundo tão mágico... E não ia deixar de aproveitá-lo.
Guardou o embrulho dourado na cestinha. Criaturinha repleta de fé e esperança aquela menina Gale. Pensava que ninguém sabia como seria o futuro, pensava que ainda poderia ter a oportunidade de entregar aquilo.
Pensou: "Adoro-te. Ainda. Incondicionalmente."
Esticou a perna direita, o sapatinho de rubi no ar. E, aí, quando ia repetir o movimento com a boca, mudou de ideia. Sorriu. Quando sorria, seus olhos brilhavam de uma forma especial. E, suavemente, colocou o pé direito, envolto no brilho vermelho do rubi, no próximo tijolo amarelo. E no próximo. E no próximo. E no próximo...