Ela escrevia. Muito. E sempre. Era uma das coisas que mais gostava de fazer. E, se tinha algo que ela sabia que fazia bem, era escrever. Praticamente uma escritora, aquela menina Dorothy.
Ele era real. De verdade. Quase de carne e osso. Mas queria ser um personagem. Talvez não desde sempre, mas, desde que ele e a menina Dorothy se conheceram, ele lhe pedia para que ela o transformasse em um personagem de uma de suas histórias.
Seria tão fácil pra ela fazer isso... Essa capacidade de transformar em literatura tudo que lhe acontecia, até os acontecimentos mais banais. Mas, como todo escritor, Dorothy também tinha momentos de dificuldades com as palavras. Para certas coisas, elas fugiam. Eram substituídas por um enorme vazio em sua mente e uma angústia na alma, a dor de não conseguir descrever com palavras o que realmente importava. Ela havia lido em um livro que as palavras diminuem as coisas que realmente importam. E ela não queria diminuir. Não queria reduzi-lo a um personagem, ele que era tão humanamente cheio de detalhes. E tinha medo de diminuir também outra coisa: o que sentia. E medo, ainda, de se entregar. De que as palavras a traíssem e deixassem claro, evidente, óbvio, o que ela escondia, guardava, tentava negar. Aquela coisa que surgira em seu peito sem sua permissão, aquela coisa que fugia ao seu controle, que queria se exibir, e que crescia...
Quando ainda morava no Kansas, ela tentara uma vez transformar alguém muito especial em personagem. Para isso, ela também se transformara. Criara todo um universo, um longo enredo, muitos personagens... Uma longa história para, no último parágrafo, fazer com que sua personagem fizesse o que ela não tinha coragem de fazer: declarar aos quatro ventos o que pulsava em seu coração. Só que, antes de concluir a história, a vida real se encarregara de frustrar seus planos. E tudo desapareceu. O personagem e a pessoa.
Depois, em Oz, ela repetira o erro. Errara, inicialmente, em se apaixonar por um espantalho, sem cérebro. E, então, escrevera tantas vezes sobre ele, esperando que ele percebesse, que tudo desse certo, como num livro de final feliz. Não era um livro, era a vida: ele não percebeu, ela precisou ser mais direta e, mesmo assim, não deu certo. Nada de final feliz.
E, agora, aquela angústia. Aquela dúvida. De um lado, a vontade de satisfazer a vontade dele. De outro, o medo de errar de novo. De a vida real ser, de novo, algo que dói e não a coisa boa que ela acreditava que sempre deveria ser. Ela não queria eternizá-lo como personagem, queria a pessoa real, como era, e agora.
O medo. O medo, o medo, o medo... Qualquer homem de lata transforma Dorothy no leão sem coragem.
E, então, ela soube o que precisava fazer. Calçou os sapatos de rubi tamanho 34 e correu pela estrada de tijolos amarelos, até chegar à Cidade de Esmeraldas. Bateu no enorme portal e pediu pra falar com o Mágico.
Quando ele chegou, ela, impulsiva, falou tudo de uma vez, sem parar, com a urgência de quem tem medo de voltar atrás e desistir: "Lembra quando viemos aqui e você disse que o Leão sempre teve coragem, o Espantalho sempre teve cérebro, o Homem de Lata sempre teve coração e eu sempre tive comigo aquilo que me faria voltar ao Kansas? Lembra quando você nos fez ver que sempre temos conosco o que buscamos, que sempre vamos encontrar o que precisamos dentro de nós? Lembra quando você me fez ver que eu mesma sempre conseguiria resolver meus problemas? Pois bem, preciso que você me faça perceber que tenho, dentro de mim, a coragem que estou buscando."
Ele sorriu. Ela era sempre assim. Era a menina tornado, Dorothy Gale. Sempre chegando como um tornado, sempre transbordando tudo. Carregando o tornado no cérebro, no coração e na alma. Ele gostava dela. Aprendera a gostar daquela coisa Clementine Kruczinsky nela. E disse: "Você tem não só a coragem para fazer, como também toda a sabedoria necessária para lidar com seja lá o que venha depois e, principalmente, o coração forte e puro para continuar pulsando e te fazendo ser a menina encantadoramente impulsiva que você é, não importa o que aconteça", e beijou-lhe a testa, finalizando "Então, faça."
Ela sorriu. E, então, fez...
Wizard of Oz: As for you, my galvanized friend, you want a heart. You don't know how lucky you are not to have one. Hearts will never be practical until they can be made unbreakable.
Tin Woodsman: But I still want one.
Um comentário:
Dorothy não é impulsiva: é uma artesã de sonhos. Dorothy transborda vida, e sabe encontrá-la até na mais ínfima moedinha falsa dada por alguém em uma madrugada. É sempre assim: Dorothy indo e vindo e indo... porque a estrada de tijolos amarelos é infinita e alcança qualquer lugar, até a vida "real"; porque tudo é real se Dorothy quiser acreditar que seja.
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