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A formiga trabalhou o ano inteiro e juntou comida. Enquanto isso, a cigarra cantava. Aí chegou o inverno - pois todo ano ele chega - e a cigarra não tinha o que comer (enquanto a formiga, que juntou comida e trabalhou, tinha). A cigarra morreu de fome. Fim.
É essa a história que a gente ouve, desde pequeno. A lição que a gente aprende: temos que trabalhar todos os dias, não cantar. E aí a gente cresce, condicionado a acreditar nisso e aceitar que a vida só é válida quando a gente se mata de trabalhar e não perde tempo com bobeiras, afinal, o trabalho enobrece a alma. Isso ou a gente percebe todas as outras interpretações possíveis e se vê obrigado a dizer "maldito Esopo!", já que esse talzinho aí conseguiu "miacabácamiavida" de muita gente.
Pra começar, desde quando cantar não é trabalhar? É certo valorizar só o trabalho repetitivo e burocrático? E criar e alimentar ano após ano o preconceito de que artista - sim, pq a cigarra era uma artista - não trabalha? O que a fábula escondia sutilmente é que a formiga, com aquela existência medíocre dela, fazendo a mesma coisa chata todos os dias, voltava pra casa e ouvia a cigarra cantando e aposto que esse era o único momento feliz do dia dela (como de tantas pessoas que trabalham, levando uma vida de formiga, e encontram um momento de felicidade em um mp3 player - ou celular, ipod, etc - na volta pra casa).
E a parte que pra mim é decisiva na história também é bem pouco valorizada: antes de morrer de fome, a cigarra bate na porta da casa da formiga, pedindo ajuda. E o que a formiga deveria fazer - se fosse uma pessoa/inseto de bem, claro? Acolher a cigarra, dividir a comida com ela e passar um divertido e agradável inverno, conversando com a nova amiga, ouvindo-a cantar e pq não arriscar? - aprendendo com ela algumas lições de canto. E o que a formiga faz? Bate a porta na cara da pobre cigarra e a deixa morrer de fome. E, por uma manipulação por anos, sendo cruel e egoísta e má, a formiga foi aceita pela humanidade como a heroína exemplar da história. E as pessoas não percebem que ela é a grande vilã, a ponto de deixar Darth Vader com medo (o cara que cortou a mão do próprio filho, btw).
Por entender esse outro lado da fábula, odeio as formigas, com suas existências estúpidas, seus dias sempre iguais, seus horários e regras fixos e banais, suas vidas não vividas. E adoro as cigarras que, mesmo sabendo dos contratempos decorrentes de levar a vida que escolheram, tiveram a coragem de optar pelas dificuldades, abrir mão de segurança e conforto e aceitar que só se é feliz fazendo aquilo que a gente ama e sabendo que amor é sacrifício...