Algumas perguntas marcam presença constantemente nas minhas aulas. "Posso trocar de personagem com ela?", "Pode usar os figurinos do baú?", "E se eu fizer errado?", "A gente vai mesmo ter que fazer alongamento hoje de novo?"... Essas aparecem sempre. E eis que, em uma aula recente, surge uma pergunta inusitada enquanto elas elaboravam uma cena: "Eu posso ser um gay?".
Contextualizando: eu dou aula numa cidade do interior, com nome de santo e toda uma tradição religiosa. Minhas alunas, dessa turma, são meninas de 12 ou 17 anos. A maioria delas estuda em uma escola que proíbe esmalte, brinco e contato físico entre alunos, entre muitas outras coisas. Eu tento não limitar a criatividade delas nunca e permito quase tudo em cena, até um anão de jardim serial killer. Lógico que eu deixaria ela ser um gay! Até mesmo pq eu estava muito curiosa pra ver o que ela ia fazer...
Pra minha surpresa, ela não usou clichê algum. Agiu normalmente, como tinha que ser. E eu estava bem feliz com isso, quando acontece o seguinte diálogo:
- Pq você está com roupa de mulher, se você é homem?
- Pq eu sou gay.
Esse é o momento em que, internamente, eu gritei "OI?". Ok, vou confessar: eu escrevi exatamente isso no meu caderno de anotações. "Pq eu sou gay. - OI?".
Tenho um amigo - gay - que me diz que eu não preciso usar a expressão "amigo gay", que é redundante, pois, se é meu amigo, já é sabido que é gay. Ok, uma imensa maioria dos meus amigos é gay. Pq eles são gays? Não, pq eles são pessoas maravilhosas e admiráveis e isso me faz gostar muito deles. Veja bem, não tô dizendo que heteros não são pessoas maravilhosas e admiráveis, estou só dizendo que "escolho" meus amigos pelo que eles são e não pelo gênero com que eles se relacionam. E eu faço teatro. Logo, a possibilidade de eu ter amigos gays é imensa. E, tudo bem, existe algo. Um difrencial. Algo que me transforma em, como dizem, um "ímã de gays". Talvez justamente por eu não diferenciá-los, por eu agir com eles como todo mundo deveria agir, tratando-os como trato todo mundo. Pq "beijar rapazes" não os define e não faz com que eles sejam diferentes. De ninguém.
Eu perdi a conta de quantos amigos gays tive na vida. Mas eu nunca vou esquecer o primeiro. Quando eu entrei na faculdade, eu queria ter um amigo gay. Filmes e Will&Grace demais, talvez. No segundo ano, em uma festa à fantasia, encontrei um amigo da faculdade. Eu estava de princesa, com um vestido enorme pink e dourado, um penteado incrível, muita maquiagem e um decote gigantesco e ele me disse "Deixa eu ver o que você tá usando no pé!". Ok, mesmo nada sendo assumido, ali estava meu primeiro amigo gay. E, alguns meses depois, ele me levou pra uma sala, fechou as duas portas, disse que tinha algo importante pra dizer e... "Eu gosto de meninos!". Óbvio que eu respondi que já sabia. E, a partir daí, era oficial.
Depois dele. apareceram muitos. Muitos "amigos", alguns AMIGOS. O leso que pintava meu cabelo e me acompanhava em lugares inóspitos, o que derrubou muitos preconceitos meus (quem nunca?), o que descia comigo pra chorar, o que não tinha cérebro (só que tinha), o que me emprestava o guarda-chuva, o que filosofava comigo, o que tinha asas, o que vivia no B612 e pertencia à nobreza... 9 pessoas maravilhosas, na minha eterna busca pelo meu Will, que seria o melhor pra sempre (e ainda não sei se o encontrei). 9 que, ainda bem, ainda são amigos sem aspas (alguns mais distantes). E 2 que eu não sei viver sem...
E, talvez por ter tantos amigos e por ver o mundo absurdo em que ainda vivemos e querer fazer algo para mudar, eu sinto necessidade de falar sobre isso. Na primeira peça que eu escrevi, Deus não é homem, nem mulher, diz que ser Deus é mais complexo do que ser travesti e ainda confessa que gostaria mesmo de ser drag queen (mas o povo lá em cima fica todo escandalizado..."). Na primeira peça infantil que eu escrevi, um dos personagens solta um "A-do-ro!" que levou a uma discussão eterna sobre a sexualidade dele. Na segunda peça adulta, eu aprofundei algo que aprendi com um dos muitos amigos (o que derrubou preconceitos meus): o quanto é tolice limitar alguém, por qualquer motivo, inclusive gênero e sexualidade. E nem vou falar da peça polêmica que quero finalizar até o meio de 2014...
Por tudo isso, me chocou o diálogo. Mas eu pensei "Bom, elas têm 12 anos... Com 12 anos, eu...". Com 12 anos, eu não sabia muito bem o que era um gay, embora convivesse com amigos gays dos meus pais. Eu não achava estranho o amigo deles que nunca tinha uma namorada (mesmo com várias mulheres tentando) morar com outro homem. Só que eu zoava esse mesmo amigo quando ele usava camisa rosa. O que eu mais lembro dele é que ele era uma das pessoas mais maravilhosas e humanas que eu conhecia. E ainda levava eu e minhas irmãs pra ver peças de teatro! As coisas são diferentes quando a gente tem 12 anos...
Só que eu tive 12 anos há duas décadas. Eu tive 12 anos nos anos 90. E era de se esperar que, em 20 anos, as coisas mudassem e as crianças e adolescentes soubessem que gays não usam roupas de mulher. E é triste ver o quanto isso ainda não mudou. E precisa mudar...
Eu conversei com as meninas sobre gays, travestis e drag queens (achei que crossdressing seria um pouco demais pra elas, por enquanto). Tentei explicar. Tentei começar uma mudança. É o que eu posso fazer. É pouco... Mas é muito, se mais gente agir assim!
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